Quando Outubro Retorna
A cada ano, o mês de outubro, especialmente para nós cristãos protestantes, traz de volta à memória um momento da história que mudou tudo. Um monge agostiniano, uma porta de igreja, noventa e cinco teses pregadas em latim. Parece simples, até insignificante pelos padrões atuais. Mas aquele gesto (realizado há mais de cinco séculos) literalmente redefiniu o Ocidente.
A data é 31 de outubro de 1517. O local: Wittenberg, pequena cidade alemã. Martinho Lutero, como professor de Teologia na universidade local, faz o que qualquer acadêmico de seu tempo faria: afixava suas ideias em um local público para provocar debate. Ninguém poderia imaginar que aquele singelo ato rotineiro para um acadêmico de sua época (que ele jamais planejou para isso) germinaria uma transformação que tocaria política, cultura, economia e a alma espiritual de uma civilização inteira.
Mas aqui está o segredo, na mais pura expressão prática do adágio popular “não sabendo que era impossível, foi lá e fez”: Lutero não sabia que era impossível! Não pretendendo a dimensão que tomou nem tampouco sabendo que desafiaria o poder religioso mais consolidado da história, foi lá e o fez mesmo assim.
Para compreender a Reforma em sua verdadeira dimensão, precisamos nos livrar de duas simplificações perigosas. Primeira: reduzi-la a uma "rebelião religiosa" de um monge rebelde. Segunda: tratá-la como puramente acadêmica, sem consequências no mundo real. A verdade é muito mais fascinante, a Reforma foi um movimento que nos define enquanto sociedade ocidental — moldou nosso pensamento, nossa fé, nossas liberdades e até a forma como organizamos a vida pública.
E talvez o mais intrigante de tudo: Lutero não pretendia nenhuma revolução. Sua intenção era simples — quase ingênua pelos padrões de hoje, ele simplesmente queria que a Igreja voltasse para casa (verdades que findaram por se concretizar nos cinco solas: Sola Scriptura; Soli Christus; Sola Gratia; Sola Fide; Soli Deo Gloria).
A Universidade Como Arena: O Contexto Acadêmico
Para entender o que Lutero fez, precisamos primeiro entender onde e por que ele o fez.
No século XVI, a Universidade de Wittenberg era um espaço vibrante de ideias (para os padrões da época). Professores não publicavam papers nem faziam apresentações em conferências como é comum hoje em dia, em vez disso, seguiam um ritual intelectual estabelecido: afixavam teses em locais públicos, convocando colegas e alunos para disputas acadêmicas chamadas disputationes. Era o "seminário aberto" medieval, era o "convite para conversa" do Renascimento.
Lutero não inventou esse método, ele, como acadêmico e professor, o utilizava regularmente, antes mesmo do ato histórico de apregoar as suas famosas 95 Teses na porta da catedral, ele já havia promovido outros debates que revelam sua trajetória intelectual:
Esses eventos são cruciais para compreender: as 95 Teses não foram um gesto isolado de um homem em fúria, foram a cristalização de uma trajetória. Lutero vinha pensando, estudando, debatendo havia tempo, ele seguia um caminho intelectual coerente, contudo, aquele 31 de outubro de 1517 fora diferente, sua rotina como professor e seu ato como promotor do debate e reflexão chamaram a atenção de Roma, assim, as 95 teses foram simplesmente o ponto de ignição de algo que anteriormente, na voz de Lutero bem como de outros personagens, ja incomodava a Igreja Católica, fora despretenciosamente a gota d'água.
Erasmo: O Humanista Que Preparou o Caminho
Nenhuma história é escrita por uma única mão, a de Lutero não é exceção, Lutero é tão somente a síntese do pensamento e eventos de sua época.
Por trás do monge de Wittenberg estava a influência profunda de um dos maiores intelectuais de sua época: Erasmo de Roterdã (1467–1536). Se houvesse redes sociais no século XVI, Erasmo seria um influenciador, era erudito, comunicativo, provocador e profundamente preocupado com a corrupção que via na Igreja.
Erasmo não era um reformador no sentido estrito, contudo era um preparador do caminho, ele defendia uma ideia revolucionária para sua época: voltemos às fontes originais da fé cristã, em latim: ad fontes. Isso significava estudar grego, hebraico, as línguas verdadeiras em que a Bíblia foi escrita, não apenas a tradução latina que a Igreja utilizava.
Em 1516, Erasmo fez algo que poucos tinham feito: publicou uma edição crítica do Novo Testamento em grego original, com notas e comentários. Para Lutero, isso foi uma revelação, de repente, ele tinha em mãos o texto bíblico puro, sem filtros, sem mediações, e quando leu com atenção, viu coisas que a teologia medieval não via.
O que Erasmo e Lutero compartilhavam:
Ambos olhavam para a Igreja de sua época e viam corrupção, não nas doutrinas, mas nas práticas, padres vendendo perdão dos pecados como se fossem maçãs na feira, bispos acumulando riquezas, formalismo vazio substituindo fé genuína. Ambos acreditavam que a solução estava em retornar ao essencial: aos Evangelhos, à mensagem simples de Cristo, às origens da tradição cristã.
Erasmo inspirou Lutero a valorizar a Escritura em sua forma pura, em suas línguas originais. Esse respeito à Palavra (não mediada, não interpretada por autoridades eclesiásticas distantes) virou o coração da visão reformadora de Lutero.
Mas aqui emerge uma diferença crucial:
Erasmo confiava na capacidade do ser humano se reformar por dentro, era otimista, acreditava que, com educação e razão, poderíamos escolher o bem, era o humanismo em sua forma mais luminosa.
Lutero, influenciado pela teologia de Agostinho, enxergava mais sombra na alma humana, para ele, o pecado havia penetrado tão fundo que não bastava educação ou boa vontade, o ser humano precisava de algo exterior a si mesmo: a graça de Deus. Não éramos bons; éramos salvos.
Essa diferença explodiu em um dos maiores debates da Reforma, em 1524, Erasmo escreveu seu De libero arbitrio (Sobre o Livre-Arbítrio), argumentando pela capacidade humana de escolher. Lutero respondeu furiosamente com De servo arbitrio (Sobre o Servo-Arbítrio) em 1525, os dois não voltariam a se falar, mas a história deve ser justa: Erasmo plantou; Lutero colheu! Essa frase, que o historiador Carter Lindberg cunhou, captura perfeitamente a relação. O humanista preparou o terreno intelectual. O reformador colheu os frutos.
Reforma, Não Revolução: O Que Lutero Realmente Queria
Aqui está um ponto que costuma ser mal compreendido, e que muda tudo na forma e como entendemos Lutero.
Ele não queria fundar uma nova Igreja. Ele queria consertar a que existia.
Sim, leia isso de novo, Martinho Lutero não acordou em 1517 pensando: "Vou ser o fundador de uma religião rival", ele acordou pensando: "A Igreja que amo está ferida. E tenho que tentar curá-la".
Quando apresentou suas 95 Teses, Lutero não estava conclamando o povo a uma rebelião, estava tão somente convidando teólogos, clérigos e estudantes a refletirem juntos. Era um chamado ao diálogo acadêmico, à renovação interna. Sua crítica às indulgências não era um ataque à fé cristã em si — era um ataque à forma como a instituição havia transformado a graça em mercadoria.
O objetivo era claro e nobre: reformar a Igreja "de dentro", trazendo-a de volta à Escritura como norma suprema, o que ele chamaria de Sola Scriptura (apenas a Escritura). Não se tratava de negar a tradição, Lutero respeitava profundamente os Padres da Igreja, o ponto era simples: quando a tradição entrasse em conflito com a Bíblia, deveria ser a Bíblia que vencesse.
Lutero também nunca quis abolir os sacramentos ou eliminar a vida comunitária da Igreja, seu projeto era purificador, não destrutivo. Queria livrar os sacramentos das distorções que os obscureciam, queria que a fé fosse viva, genuína, conectada ao Evangelho — não uma série de rituais vazios.
Então por que tudo mudou?
A resposta é tanto histórica quanto trágica: a instituição não ouviu. Ela reagiu.
Em 1520, a Igreja publicou a bula Exsurge Domine, condenando Lutero, a mensagem era clara: você não é bem-vindo ao diálogo! Em 1521, na Dieta de Worms, ele foi excomungado e declarado herege, então a porta para a reconciliação se fechou.
Essa postura intransigente teve um efeito contrário ao esperado, enquanto a Igreja esperava que a condenação silenciasse Lutero, o que aconteceu foi o oposto. Os príncipes alemães, movidos por razões que misturavam fé genuína com interesses políticos e econômicos (resistência ao envio de recursos para Roma, controle de terras da Igreja, afirmação de autonomia frente ao papado), passaram a proteger Lutero como forma de afirmar sua independência.
A ruptura, portanto, não foi planejada por Lutero. Foi precipitada pela recusa institucional em dialogar.
Muito embora Lutero reconhecesse posteriormente a necessidade de estruturas protestantes autônomas, essa não era sua intenção original. Esse contraste entre intenção e desfecho, entre o que queremos e o que conseguimos, é uma das características mais profundas da história humana, grandes movimentos frequentemente transcendem o desejo de seus protagonistas.
A Adesão da Elite e o Ponto de Não Retorno
Uma vez que a Igreja fechou a porta ao diálogo, algo curioso aconteceu. A mensagem de Lutero não desapareceu, ao contrário, encontrou ouvidos cada vez mais atentos. A elite alemã (príncipes, nobres, comerciantes) viu em Lutero não apenas um reformador religioso, mas um aliado político, era a verdade que muitos acreditavam genuinamente em sua visão espiritual, mas também era verdade que havia interesses convergindo:
Os príncipes queriam resistir ao envio de recursos financeiros para Roma (recursos que poderiam ficar em suas terras), queriam controlar as terras e bens da Igreja (propriedades vastas e valiosas que representavam poder econômico real), queriam afirmar sua autonomia frente ao Sacro Império e ao papado (afirmações de soberania nacional que moldariam a Europa moderna).
Lutero tornou-se, assim, não apenas um pensador religioso, mas um símbolo de independência política. A proteção que a nobreza alemã lhe oferecia não era puramente altruísta, mas funcionava, e funcionou bem demais para que pudesse ser revertida. O que começou como um debate acadêmico entre teólogos tornou-se questão de Estado.
As Ondas que Ainda Chegam: Consequências Para o Ocidente
Quando Lutero pregou suas 95 Teses, o mundo era um. Quando ele morreu em 1546, o mundo era completamente outro, e cinco séculos depois, ainda vivemos nas consequências daquele deslocamento sísmico.
Outubro, Então e Agora
Outubro chegou novamente! Para protestantes ao redor do mundo, é mês de recordação e celebração, para católicos contemporâneos, é oportunidade de diálogo maduro com uma história que não podem negar, para todos nós (cristãos ou não) é ocasião de compreender como um monge, uma porta, e noventa e cinco teses em latim geraram ondas que ainda nos definem.
Mas há algo ainda mais profundo em que refletir: A Reforma nos ensina que grandes transformações frequentemente começam pequenas! Começam com alguém disposto a questionar o que é errado e nos imposto como certo, começam com alguém que não sabe que é "impossível" e faz mesmo assim.
Lutero não planejava uma revolução, não buscava uma revolução para chamar de sua! Ele simplesmente buscava fidelidade, buscava que sua Igreja voltasse ao essencial, mas em sua fidelidade ao que acreditava ser verdadeiro, desencadeou mudanças que moldaram civilizações.
Cinco séculos depois, a Reforma continua ecoando em nossas escolhas diárias:
Outubro nos convida, portanto, não apenas a lembrar o que aconteceu em 1517. Nos convida a reconhecer que aquele gesto de um monge disposto a questionar o poder estabelecido, com humildade, com Bíblia na mão, mas com coragem inabalável, ainda nos define.
Ainda nos pergunta: o que estamos dispostos a questionar? Por quais verdades estamos dispostos a permanecer fiéis, mesmo quando é custoso? Essas perguntas nunca envelhecem. Por isso, outubro sempre retorna com força.
Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. — Jo.8:32
Referências Bibliográficas Sugeridas
LINDBERG, Carter. The European Reformations. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.
OBERMAN, Heiko. Lutero: Homem entre Deus e o Diabo. São Leopoldo: Sinodal, 1992.
GONZÁLEZ, Justo L. A Era da Reforma. São Paulo: Vida Nova, 2011.
MCGRATH, Alister. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2013.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
KOLB, Robert. The German Reformation. Oxford: Oxford University Press, 2009.
PETTEGREE, Andrew. The Book in the Renaissance. New Haven: Yale University Press, 2010.
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